O primeiro Olho de Gato — 29 de Março de 2002

* Foi há exactamente dez anos que foi publicado este primeiro Olho de Gato no Jornal do Centro. Na altura eram crónicas quinzenais.


O real tem muita imaginação

1. A estrutura desta coluna será fragmentada por vários assuntos, escolhidos para ilustrar a ideia que dá título a esta Crónica: “O real tem muita imaginação”.

Trocado por miúdos quer dizer que, por mais que tentemos perceber as coisas e o mundo, há sempre algo que nos escapa, e é esse ficar aquém e além, é essa distância que dá sal à nossa vida e combustível ao nosso espírito.

2. O líder distrital do CDS-PP, Hélder Amaral, veio lembrar que as nomeações políticas, a acontecerem na sequência das eleições de 17 de Março, têm que ser conversadas entre o PSD e o CDS-PP.

Parece lógico e, no respeito pelos resultados eleitorais no Distrito, por cada cinco boys (ou girls) laranjas terá que ser colocado um popular. Será de acompanhar com interesse este bordado melindroso que só é fácil na aritmética das nomeações.

3. Como de costume, os jornais locais do último fim-de-semana, traziam as suas páginas muito influenciadas pelos Serviços de Comunicação da CMV.

Reparei num título de primeira página dum jornal cujo conteúdo é, há vários anos, quase exclusivamente dedicado à informação oficial da CMV: “Para Recuperar Prédios Degradados, Câmara dá Dinheiro e Isenta de Taxas”. Esta é uma deliberação positiva de incentivo e facilitação administrativa aos proprietários de casas com necessidade de recuperação.

Mas é também tentar tratar com aspirinas uma infecção grave.

Há poucos dias, caiu mais uma casa no Centro Histórico.

Décadas de desleixo, rendas baixas e uma ausência de política para o Casco Histórico onde é preciso pôr gente a morar, levam a este cenário preocupante, visível por exemplo na Ruas Nossa Senhora da Piedade e Augusto Hilário. É preciso vontade política para recuperar casas no Centro Histórico e destinar essas casas a jovens. 

4. Lê-se na primeira edição deste Jornal e acredita-se: na escola do Massorim, este ano uma mãe fornece o papel higiénico para a escola, pelo que não vai haver ruptura de abastecimento. Os pais fizeram o isolamento térmico e acústico do Pavilhão, deram a fotocopiadora, a televisão e o vídeo. Os professores pagam despesas da escola do próprio bolso. O dinheiro proveniente da Câmara dá, com muita dificuldade, para o Expediente e Limpeza.

A Escola tem computador e Internet. Abençoado Ministro Mariano Gago, que nunca teve da Educação uma visão de serviços mínimos! 

5. É uma fotografia de Sharbat Gula, uma afegã de olhos verdes, misteriosa, que foi capa da revista National Geografic, em 1985. 

Agora esta afegã foi reencontrada pelo mesmo fotógrafo da Agência Magnum, Steve McCurry, e foram publicadas em todo o mundo as duas fotografias de Sharbat Gula separadas pela marca de 17 anos de sofrimento.

São dois documentos impressionantes que me fizeram lembrar um canto afegão que transcrevo, do livro Rosa do Mundo 2001 Poemas
Para o Futuro
:

O Céu cairá sobre nós

E ainda assim estarei
por cá para vos amedrontar.
As nossas barbas
deixarão de ser grisalhas
E os nossos ossos
regressarão à terra que os deu a nascer
mas ainda assim cá
estarei para vos atrapalhar.
Há muito que este solo
sagrado deixou de ser fértil
E as nossas mulheres
são feias;
Porque quereis então
este território?


Ao contrário que dizem este poema e as burkas das mulheres afegãs, o rosto de Sharbat Gula marcado pelo sofrimento ainda é lindo, mesmo depois da queda do céu soviético, mesmo depois da queda do céu taliban, mesmo ainda depois do céu americano ter caído sobre o “solo sagrado” infértil do Afeganistão. 

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