Inventário em contraluz




Faço-te o relato destas coisas agora,
quando todos estão mortos.
Quando já somente a memória
é rio, colheita, solitária espuma de pátios,
trinados que se desfazem ao calor
enquanto doces mulheres
falam debaixo das folhas, pela tarde,
diante de tachos de orégão.
Agora tudo é longínquo
pois foi caindo de nós brandamente
como um pouco de areia da mão.
Agora escutas talvez, quiçá sonhas.
Inventas talvez esse duro monte
sacudindo na erva seu relincho.
Ou segues, por um fio de lua,
o odor que te conduz aos velhos baús,
ao armário, ao retrato do tio,
o dos bigodes de cigano e olhos de anjo,
o que pestaneja com secreta delícia
quando tu, doce irmã e minha mãe,
punhas a lâmpada
frente às frutas e aos pratos de arroz,
o que morreu num domingo, lembras-te?
Falo-te da memória,
os quartos, os móveis e os cochichos na memória.
Do modo como o vento
roçava os arcos da sala
e fazia gemer os corpetes e os lenços no arame,
de quando o mar, disfarçado de vento, quando o fumo.
Falo-te do mundo, do tempo neste mundo.
De dias que arderam como finas moedas
(rostos nítidos, com luz, com luz furiosa e viva,
vestidos que cobriram amados corpos, que nos cobriram,
semanas cheirosas a erva-cidreira)
falo-te de então.
Héctor Rojas Herazo


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