O Escorchamento de Mársias (Ticiano), visto por George Steiner

O Escorchamento de Mársias, Ticiano, 1570-1575


«Não conheço quadro mais inexaurível — pelo que entendo dizer mais resistente a toda a tentativa de análise acabada, ainda que iconológica ou formal, histórica ou alegórica — do que O Escorchamento de Mársias, obra-prima da extrema fase final do Ticiano. Todos os nossos temas parecem figurar na turbulência de abismo dessa concepção «enorme». Mas nenhuma investigação, nenhuma interpretação decifra o seu núcleo secreto ou a soma das suas linhas de força.

Discernimos o Rei Midas, condenado por Apolo a exibir orelhas de burro por ter sido vencido por Pã num agôn, num torneio musical. (Mas será, ao mesmo tempo, este Midas um auto-retrato do pintor?)  Quem é este tocador de lira da braccio, à esquerda tão aparentemente inconsciente do horror que se desenrola perante os seus olhos? Para alguns, trata-se de um duplo de Apolo, um Apolo que não se envolve na acção sádica. Mas, segundo outros, seria Orfeu, fiel seguidor do deus vencedor. E qual a proposição principal da composição? Vitória neoplatónica da arte inspirada pela razão, pela lógica do transcendente representada pelos instrumentos de cordas sobre a arte «bruta», impensada, pré-humana, que os instrumentos de sopro simbolizam e nos fazem ouvir? A esta leitura, em meu entender, opõe-se contudo, não só a monstruosidade da vingança de Apolo sobre o corpo do sátiro, mas também o facto, muito pouco notado, de os traços martirizados de Mársias não deixarem de lembrar os do próprio Ticiano.

O antagonismo entre instrumentos de sopro e instrumentos de corda subsiste até aos nossos dias, nomeadamente na Anatólia. Os tocadores de flauta, montanheses, recusam o casamento, e até mesmo os contactos sociais com os tocadores de alaúde ou de cítara que residem no vale. A antropologia e a etnomusicologia fornecem testemunhos de rixas sangrentas entre estes dois clãs hereditários.

A descodificação oficiosa do mito evoca a insolência de Mársias, a provocação que lança ao deus e a vitória tanto espiritual como técnica deste último, cujo manejar da lira faz entrar num mesmo movimento harmonioso não só a alma e a razão, mas a natureza inteira. Tratar-se-ia de um duelo entre duas formas de expressão musical.

Mas já no Renascimento, certos mitógrafos pensam adivinhar um sentido mais profundo e mais próximo do horror e da violência do desenlace. A arte, a estética apolínea declaram, como as do Orfeu, a união da música e da palavra do sono e do logos. Ao que se oporia esta derisão mimética da voz humana, essa recusa de um acompanhamento textual e essa exaltação imitativa do canto dos pássaros levadas a cabo pelos instrumentos de sopro. A luta entre Apolo e Mársias seria a de uma tempestade «falante», de uma música à medida —  no sentido ao mesmo tempo matemático e cívico do termo —  do homem contra a tonalidade nua, contra a recusa através do som do fardo de sentido gramatical. A flauta de Pã (cuja prática desfigura e, por conseguinte, enfurece a deusa Atena), a flauta de Mársias, não é a dos idílios pastoris ou do reportório de salão. É grito puro e branco, ameaça de escorchamento o ouvido (como Mársias será escorchado), clama o silvo do vento e da víbora — em suma, contesta a nossa humanidade configurada pela linguagem invocando o nome estridente e transtornado pelo êxtase de tudo o que é mais antigo do que o homem, de tudo o que é canto sem palavras, grito de amor e guerra, verbo antes de verbo de um caniço oco, precisamente o dos instrumentos de sopro, que não é ainda um caniço pensante. É esta brutal inocência do orgânico, dos traços animais no homem — o fauno, o sátiro, deles são emblemáticos — que Apolo procura extirpar. É a modulação da música que a orienta para o dizer que enuncia o seu triunfo sádico.»
in Os Logocratas, de George Steiner
tradução de Miguel Serras Pereira

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