Poema em que se fala de caminhos...

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Andar, andar, andar
é o destino dos amantes
que não têm destino
como nós
nem têm, nem querem
casa para viver.
Por isso há tantos poemas
em que eles vão...
Iremos nós também
e todos os caminhos nos servirão
porque onde tu estiveres comigo
não haverá mais ninguém.
Iremos e se a noite nos surpreender
no meio da jornada
— e é muito natural que sim
porque sendo longe e incerto
o fim que levamos
enquanto não chegamos
estaremos no meio —
se a noite nos surpreender
a única coisa que faremos
é dar-nos as mãos
e caminharemos assim
que o que é principal
é não nos perdermos um do outro.
E se o meu ombro se cansar
de receber a tua cabeça
— e é muito natural que sim
porque é longe e incerto o nosso fim —
se o meu ombro se cansar
— que também os amantes se cansam às vezes-
se o meu ombro se cansar
sempre encontraremos uma pedra
para atapetar com o musgo dos teus cabelos
- que eu não acredito que as pedras sejam duras
e desconfio que a dureza está nas suas cabeças —.
Sempre encontraremos uma pedra...
Era de pedras que faziam o presépio do menino
lá na minha terra
o presépio onde iam dar
todos os caminhos feitos de serradura.
E eu, que no tempo era um rapazinho travesso
mas dado à meditação,
pensava se todos os caminhos acabariam ali
ou se cada um
não seria a continuação de outro.
E às vezes eu
— que no tempo era um rapazinho travesso —
gostava de fazer às escondidas do cura
com serradura
um caminho que não passasse
pelo presépio do menino.
E havia lá,
na arca da sacristia da minha terra,
um boneco de barro que não era um pastor
mas antes parecia um poeta
ou um vagabundo
ou um doutor moderno desempregado.
E era esse desengraçado boneco,
muito simpático por sinal,
que eu punha a encher todo aquele caminho
desviado do presépio do menino.
E sempre ele progredia um bocado todos os dias
— artes mágicas que eu exercia às escondidas do cura —
apesar do ar atarantado que tinha
e passava indiferente
aos coros mudos dos anjos e dos pastores
— lá que eles estavam com a boca aberta, estavam —.
E sabes tu, ó meu amor,
porque é que ele não se perdia
naquele caminho de serradura
que não passava pelo menino
apesar do ar atarantado que tinha?
Era porque a estrela de prata
— nós chamávamos prata àquelas folhas de estanho
que vêm a enrolar os cigarros e os chocolates —
era porque essa estrela de prata
estava pregada com um arame
num ramo de pinheiro
mais alta do que o presépio do menino
e alumiava todos os caminhos
sem distinção.
Assim o meu vagabundo
o meu doutor desempregado
com mais ou menos um empurrão
lá ia chegando à cidade
feita de papelão
que luzia no alto do monte
à sombra do pinheiro
de onde pendia aquela estrela de prata.
É verdade que no fim
ia para a arca como os outros
mas não tinha ficado ali
durante toda a época do natal
a olhar para o presépio
com o seu menino
e os seus animais
como um animal.
Geraldes de Carvalho



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