Arco-Íris*

* Texto publicado no Jornal do Centro há exactamente dez anos, em 31 de Março de 2006

Chovia como num filme de Andrei Tarkovski. Água, muita água, cântaros de água, caíam dos céus. Finalmente, a tão esperada chuva caía horas seguidas sobre a cidade, limpando o ar.

Eles iam a sorrir. Um com o outro. Um para o outro. Um ele e uma ela. Rua abaixo. Eram donos da vida e do tempo. Nem viam as montras nem as pessoas. Passavam por cima da água que não vencia a estreiteza das sarjetas.

Entre eles era uma raiva brincada. “Maldito sejas!”; “maldita sejas!”; “cala-te!”; “não me calo nem me fico, quem é que julgas que és tu, meu palerma?”. Aquelas palavras soavam, nos ouvidos deles, como um carinho. Instalara-se entre eles aquela ternura estranha. Aquele paradoxo. A chuva ria-se daquela dessintonia entre as palavras deles e o gostar deles.

As pessoas olhavam e desviavam-se. Tinha que ser pois eles, como já se disse, não viam ninguém. Nem das poças de água se desviavam.

*****

Entraram numa pastelaria. Pediram o mesmo chá de tília para duas chávenas. A mesma torrada para dois. Partilharam as fatias de dentro da torrada. As fatias sem côdea, a escorrer manteiga. As melhores. Ele, desajeitado, queimou-se no bule. Deitou chá na chávena dela, na dele e no tampo da mesa. Sorriam enquanto o calor das chávenas lhes aquecia as mãos. Saíram, desatentos do mundo, sem esperarem pelo troco. Regressaram à chuva.


*****


Ele estendeu a mão para ela. Ela para ele. Olharam-se no fundo dos olhos. A chuva fria, agora, já não caía com tanta força. Podia-se dizer (se não fosse um disparate) que a chuva agora tinha clareiras.
Abraçaram-se com faíscas nos olhos. Os lábios aproximaram-se. 
Fotografia daqui

No céu acendeu-se um arco-íris.

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